A leitura do jornal do dia 14 de abril de 2025 [1] noticiava a reconfiguração do programa “Mais acesso a especialistas”. A notícia da iniciativa, em princípio louvável, revelava, todavia, bastidores de um conflito interno no Ministério da Saúde, que explicita o quanto ainda temos a amadurecer no tema da construção, monitoramento e avaliação de políticas públicas – não obstante todo o esforço de construção que se tem desenvolvido neste campo. Mais especificamente, o quanto é preciso avançar na visão de que políticas públicas podem não ser de governo, mas sim de Estado.
Vamos localizar o tema. A notícia acima referida, dizia do esforço do Ministério da Saúde, no sentido da reformulação do referido programa. O modelo originário tinha por eixo principal, o desenho de incentivos para que estados e municípios se engajassem em iniciativas para reduzir a fila de espera de procedimentos como exames e cirurgias. A formatação que se baseava no envolvimento dos demais entes federados – é o que diz a notícia – foi reputada indesejável, eis que, dentre outros argumentos, com isso não se tinha o reforço da presença do governo federal como o garantidor da solução do problema. A alternativa agora sob estudo é o uso de parcerias com a rede privada.
A notícia, nos termos em que foi veiculada, desperta algumas perplexidades.
O SUS é política pública de Estado
A primeira delas envolve a naturalidade com que se afirma a relevância de se conferir maior visibilidade a um determinado plano federal, num segmento de serviço público que tem configuração constitucional expressa, a saber, o Sistema Único de Saúde. A execução dos serviços de saúde foi reputada pelo constituinte de 1988, como política pública de Estado, reforçada na sua pretensão de permanência e estabilidade, pelo desenho institucional e principiologia própria, todos explicitados em sede constitucional. A solução de engenharia constitucional foi reforçada, em alguma medida, pela Emenda 20/2000, que assegurava mecanismos de financiamento considerados todos os integrantes do sistema único – ferramenta que indiretamente reforça a viabilidade do sistema, que não sobrevive sem recursos que o sustentem.
A opção, boa ou má sob a perspectiva estritamente política, é do texto constitucional, e até o momento, não foi objeto de qualquer iniciativa de emenda que modifique a escolha constituinte. Nestes termos, segue mandatória, não admitindo flexibilização nos parâmetros fixados na Carta de 1988.
A pretensão de assegurar visibilidade ou identificação pela população, de que o executor do serviço seja este ente federado – ao invés de outro – externa uma visão que entende o SUS como política de governo, que admite reconfiguração conforme a opção estratégica das forças contingencialmente no poder. Afinal, buscar conferir destaque a uma específica camada da federação brasileira é desvincular-se da ideia de sistema único, com o concurso de todos os entes federados em pé de igualdade – alternativa que, a meu sentir, o desenho constitucional pretendeu exatamente evitar.
Spacca
Segunda perplexidade que a iniciativa causa, está na naturalidade com que se proclamou fosse essa a intenção do esforço de reconfiguração da iniciativa então em já em andamento – alinhada com a oferta de incentivos para que estados e municípios reduzissem as filas de atendimento. A proclamação, com todas as letras, de que se buscava transformar uma iniciativa relacionada à tutela ao direito fundamental à saúde numa “marca” do governo federal revela a naturalização da já apontada visão de que se tenha no SUS não propriamente uma política de Estado. Serviços de saúde, segundo esta visão externa, compreenderiam uma dimensão de discricionariedade em relação ao seu modo de prestação, admitindo atores de maior ou menor relevância, identificados com esta ou aquela iniciativa.
Observe o ilustre leitor, que a crítica aqui formulada valeria igualmente caso se identificasse um estado ou município afirmando pretender maior visibilidade do que a conferida aos demais entes federados na execução de serviços de saúde. Iniciativa dessa natureza, deflagrada por qualquer dos entes federados milita contra uma escolha que não está na esfera de discricionariedade do agente político de plantão, eis que foi delimitado pelo constituinte.
Descaracterização do caráter hierarquizado da rede
Terceira perplexidade que a leitura da notícia desperta, diz respeito ao distanciamento de outro critério que tem sede igualmente constitucional, a saber, o caráter hierarquizado da rede de serviços públicos de saúde (artigo 198 CF).
O deslocamento de exames e cirurgias para um específico integrante do SUS (União) pela circunstância de se cuidar de serviço represado se afasta da estrutura em níveis de atendimento (primário, secundário ou terciário), e pode ainda deitar efeitos negativos em relação à premissa de integração funcional, que é de presidir a atuação do sistema único.
Também aqui é de se apontar que não se tenha alternativa contida numa esfera de livre decidibilidade do agente político. Afinal, a hierarquização da rede, referida em texto constitucional expresso (artigo 198, caput CF) organiza o sistema, referindo o paciente a estruturas específicas que hão de prover o atendimento integral, observado o nível de atendimento que sua condição de saúde exija. Não por outra razão se tem, na saúde, uma política de Estado, que é de operar a partir da premissa de estabilidade, para que as ações de saúde possam se dar de maneira orgânica, segundo um signo de planejamento.
O redirecionamento a outras estruturas – iniciativa privada inclusive – pode impactar adversamente no sistema, determinando uma representação equivocada em relação, por exemplo, a providências de continuidade do atendimento inicialmente empreendido por agente externo ao SUS, neste modelo “reconfigurado” do programa “Mais acesso a especialistas”. Mais ainda, é possível prever um contencioso potencial no que toca aos limites de responsabilidade desses agentes estranhos ao SUS, e daqueles que, por determinação constitucional, têm competência para atuar. No centro do conflito, possivelmente, se terá o paciente…
Direcionando a imaginação para o reforço do SUS
Quarta perplexidade que a notícia evidencia, é a apresentação, como uma espécie de argumento de reforço, da tese de que dificuldades de ordem burocrática tornavam mais lento o processo de incentivo de estados e municípios a aderirem ao esforço de redução das filas de atendimento. Assim sendo, a solução “criativa” seria a execução dos serviços por uma via mais célere – que compreenderia não só o redesenho em si do processo de solicitação e financiamento da providência médica, mas também a troca dos agentes executores.
Se a operação de serviços de saúde é de se dar, como determinado pela Constituição, por intermédio de sistema único, é de se supor que, transcorridos 37 anos da formalização dessa opção institucional, os mecanismos de controle e financiamento tivessem alcançado já nível de aperfeiçoamento que tornassem menos impactante o peso da burocracia no seu funcionamento.
Em tempos de governo digital, em que a União proclama sua excelência na inserção neste admirável mundo novo, a afirmação de que a burocracia do sistema SUS seja um empecilho suficiente a determinar a reconfiguração de uma política pública desta abrangência e relevância soa paradoxal.
Mais ainda; o problema apontado – burocracia – não guarda uma relação direta de solução, com a troca dos agentes executores do serviço público cogitado. O procedimento de execução dos serviços e respectivos pagamentos não se tem por abreviado ou simplificado simplesmente porque o agente executor não é mais um estado ou município. O esforço de simplificação – princípio do governo digital e da eficiência pública, nos termos do artigo 3º, I da Lei 14.127 de 29 de março de 2021 – determinando a desejada agilidade poderia se verificar igualmente com a preservação dos entes federados integrantes do SUS como executores principais dos procedimentos represados.
Também neste ponto se tem por evidenciada uma compreensão do SUS como política de governo – e não de Estado. Afinal, o investimento de imaginação e criatividade na busca de soluções mais ágeis, que preservem as respectivas esferas de responsabilidade dos integrantes do SUS é a visão que se alinha com uma política de Estado, permanente e estável, que se beneficie desta construção incremental de soluções.
A proposição de mecanismos alternativos de agilização dos procedimentos e respectivos pagamentos, sob o argumento de que se está buscando uma solução pontual para um problema de represamento nos atendimentos, secundariza a importância de esforços de revisão estrutural do relacionamento entre os integrantes do sistema SUS – e com isso, nega em alguma medida a já referida opção constituinte por um modelo que não é de estar sujeito às contingências do cenário político. Políticas públicas de Estado são concebidas exatamente para isso.
Preservar a esfera de discricionariedade de agentes políticos é um desdobramento potencial de regimes democráticos – a proposta vencedora nas urnas é de encontrar espaço para concretização no dia a dia da gestão. Esta ideia, todavia, pode encontrar limites na própria Constituição; e isso assim se dá pela relevância do valor social que se esteja a preservar com o recorte da esfera de decidibilidade do agente político.
O SUS é mesmo um desafio; uma experiência particular no cenário nacional – mas tem se revelado, com todos os seus percalços, um grande avanço para a sociedade brasileira. Saúde é uma conquista sujeita a consolidação incremental, e não por outra razão o constituinte optou por erigi-la como política pública de Estado.
Ao gestor ávido por imprimir a sua marca, sempre restarão as (múltiplas) áreas que a Constituição deixou livre à escolha democrática. Mas não no SUS…
[1] https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/04/14/mais-acesso-a-especialistas-governo-preve-cirurgias-em-hospital-privado-para-acelerar-fila-do-sus.ghtml