a tênue linha entre recurso e abuso



Opinião

O agravo interno figura como um dos recursos mais comuns no processo civil contemporâneo, especialmente nas instâncias superiores. Previsto no artigo 1.021 do CPC, é utilizado para provocar a reapreciação colegiada de decisão monocrática proferida por relator.

Contudo, sua banalização vem sendo enfrentada com instrumentos de contenção e penalização do abuso recursal, especialmente através da multa prevista no §4º do artigo 1.021, a qual vem gerando debates sobre seus critérios de aplicação, limites e fundamentação constitucional.

Este artigo busca analisar o alcance da penalidade prevista no Código de Processo Civil, discutindo especialmente a interpretação da conjunção “ou” contida no texto legal e sua releitura pelo Superior Tribunal de Justiça como um “e” implícito. Mais do que uma disputa semântica, trata-se de uma questão com implicações práticas relevantes na atuação da advocacia e na segurança do sistema recursal.

A redação do dispositivo do artigo 1.021, §4º, do CPC é direta. Vejamos:

Art. 1.021. Contra decisão proferida pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado, observadas, quanto ao processamento, as regras do regimento interno do tribunal.

(…)

§ 4º Quando o agravo interno for declarado manifestamente inadmissível ou improcedente em votação unânime, o órgão colegiado, em decisão fundamentada, condenará o agravante a pagar ao agravado multa fixada entre um e cinco por cento do valor atualizado da causa.

Proteção da dignidade do processo

A finalidade da norma é clara: desestimular a reiteração mecânica de argumentos já superados em decisão monocrática, protegendo a dignidade do processo, a autoridade dos tribunais e o uso racional do sistema recursal.

A conjunção “ou”, em sua interpretação gramatical simples, indica alternativa. O texto legal, portanto, autoriza a aplicação da multa em qualquer uma das hipóteses: se o recurso for manifestamente inadmissível ou improcedente, desde que por votação unânime.

Todavia, o Superior Tribunal de Justiça tem trilhado entendimento diverso. A jurisprudência majoritária tem exigido, de forma cumulativa, tanto a improcedência (ou inadmissibilidade) do recurso quanto a constatação de intuito manifestamente protelatório, afastando a literalidade do texto legal.

Vejamos, senão, precedente do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria:

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. SEGURO. SINISTRO DECORRENTE DE APROPRIAÇÃO INDÉBITA. EXISTÊNCIA DE CLÁUSULA CONTRATUAL ABUSIVA. RISCOS EXPRESSAMENTE EXCLUÍDOS DA COBERTURA SECURITÁRIA. SÚMULAS 5 E 7/STJ, POR AMBAS AS ALÍNEAS DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL. REQUERIMENTO DA PARTE AGRAVADA DE APLICAÇÃO DE MULTA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. A revisão das conclusões estaduais (quanto à abusividade da cláusula contratual que exclui da cobertura riscos decorrentes de delitos contra o patrimônio) demandaria necessariamente, a interpretação de cláusulas contratuais e o revolvimento do acervo fático-probatório dos autos, providências vedadas no âmbito do recurso especial, ante os óbices dispostos nas Súmulas 5 e 7/STJ, por ambas as alíneas do permissivo constitucional. 2. A aplicação da multa prevista no § 4º do art. 1.021 do CPC/2015 não é automática, porquanto a condenação do agravante ao pagamento da aludida multa, a ser analisada em cada caso concreto, em decisão fundamentada, pressupõe que o agravo interno mostre-se manifestamente inadmissível ou que sua improcedência seja de tal forma evidente que a simples interposição do recurso possa ser tida, de plano, como abusiva ou protelatória, o que, contudo, não se verifica na hipótese examinada. 3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no REsp: 1842604 MG 2019/0303852-0, Relator.: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 08/02/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/02/2021)

Spacca

Essa mutação interpretativa opera uma transformação do “ou” legal em um “e” implícito jurisprudencial, criando um filtro mais rigoroso à aplicação da sanção, com vistas a garantir:

  • a preservação do direito à ampla defesa;
  • a vedação de sanções automáticas;
  • e a prevenção de injustiças quando o recurso é infundado, mas não abusivo.

No entanto, essa interpretação advinda do Superior Tribunal de Justiça, malgrado vise privilegiar a segurança, pode esvaziar a eficácia da norma e enfraquecer seu caráter pedagógico e dissuasório — exatamente o oposto do que o legislador buscou ao cunhar o dispositivo do artigo 1.021, §4º, do CPC.

Fissura interpretativa relevante

Apesar da predominância de entendimentos mais restritivos no Superior Tribunal de Justiça, há decisões, especialmente dos Tribunais de Justiça pátrios que aplicam a multa do §4º com base na interpretação literal do “ou”, o que evidencia uma fissura interpretativa relevante no sistema recursal. Vejamos, senão, alguns exemplos que seguem:

AGRAVO INTERNO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. TEMPESTIVIDADE NÃO VERIFICADA. COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO AOS AUTOS. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO TEOR DA DECISÃO. PONTO ATACADO. ROL DO ART. 1015 DO CPC. NÃO PREVISÃO. DECISÃO MONOCRÁTICA. MANUTENÇÃO. MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA. MULTA PREVISTA NO ART. 1.021, § 4º, DO CPC. INCIDÊNCIA. 1. O termo a quo do prazo recursal se inicia com a ciência inequívoca do teor da decisão recorrida, o que pode ocorrer, dentre outras hipóteses, com o comparecimento espontâneo aos autos. 2. Constatando-se que o agravo de instrumento foi interposto após o término do prazo legal, resta patente sua extemporaneidade. 3. Revela-se inadmissível o recurso quando a decisão agravada, no ponto atacado, não está prevista no rol, em regra taxativo, do art. 1.015 do CPC, porquanto não versa especificamente acerca de tutela de urgência. 4. Sendo manifestamente improcedentes as razões lançadas no agravo interno, cujo reconhecimento se dá por decisão unânime do Colegiado, impõe-se a aplicação da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil. 5. Agravo interno conhecido e desprovido. (TJ-DF 07342215920248070000 1947457, Relator.: ANA CANTARINO, Data de Julgamento: 21/11/2024, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: 04/12/2024)

***

AGRAVO INTERNO – Interposição contra decisão do relator que negou seguimento aos recursos – Inconformismo – Desacolhimento – Agravado que recebeu o diagnóstico de transtorno do espectro autista, comprovou que é usuário do plano de saúde e necessita do tratamento com terapias multidisciplinares – Negativa de cobertura do tratamento discutido que restringe direito inerente à natureza do contrato, nos termos do art. 51, § 1º, inc. II, do Código de Defesa do Consumidor, sendo patente a abusividade da cláusula invocada pela ré, aplicando-se ao caso, ainda, a Súmula 102 deste Egrégio Tribunal de Justiça – Decisão mantida – Pretensão que é manifestamente improcedente – Aplicação de multa de 5% sobre o valor atualizado da causa – Inteligência do art. 1 .021, § 4º, do Código de Processo Civil – Recurso desprovido com imposição de multa. (TJ-SP – Agravo Interno Cível: 10178901920238260554 Santo André, Relator.: J.L. Mônaco da Silva, Data de Julgamento: 17/04/2025, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/04/2025)

Essas decisões reafirmam que, ao menos nos tribunais estaduais, a leitura gramatical do dispositivo ainda encontra espaço, especialmente quando os fundamentos do agravo se limitam à reiteração de argumentos já superados, mesmo sem prova explícita de má-fé.

Resta clara que o cenário jurisprudencial demonstra a importância de que o operador do direito deve conhecer não só o texto da lei, mas também a linha interpretativa do tribunal específico onde atual, sob pena de sujeitar o cliente a riscos pecuniários.

Cumulação de multa e litigância

Outro ponto relevante é a possível cumulação da multa prevista no §4º com as sanções por litigância de má-fé do artigo 80, incisos IV e VI, do CPC, hipótese que ocorre quando o tribunal, além de rejeitar o agravo, reconhece que o recurso foi manejado com nítido desvio de finalidade.

Nesse aspecto, transcreve-se o teor do artigo 80, IV, VI e VII, do Código de Processo Civil em que se reconhece a possibilidade de aplicação de multa em vista da provocação de incidente manifestamente infundado, bem como resistência injustificada ao andamento do processo. Vejamos:

Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:

(…)

IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

(…)

VI – provocar incidente manifestamente infundado;

VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

Essa situação é especialmente comum quando a parte:

  • já havia interposto Embargos de Declaração com caráter protelatório, e
  • insiste no Agravo Interno com os mesmos fundamentos já refutados.

A jurisprudência já admite a cumulação das multas, inclusive reconhecendo naturezas jurídicas distintas: uma de caráter administrativo-punitivo (artigo 1.021, §4º) e outra de caráter reparatório (artigo 81).

Vejamos, senão, jurisprudência dos tribunais pátrios que reconhece a possibilidade de cumulação de multa pela interposição de recurso protelatório c/c com multa por má-fé processual:

TRT-21 – Sentença, proc. 0000733-77.2024.5.21.0013
“Aplico à parte embargante multa de 2% sobre o valor da causa (art. 1.026, §2º, CPC) e multa de 5% por má-fé processual (art. 81, CPC), cumulativamente.”

A possibilidade de cumulação das penalidades previstas no artigo 1.026, §2º, e no artigo 81 do CPC foi expressamente reconhecida em sentença proferida no âmbito do TRT da 21ª Região (proc. 0000733-77.2024.5.21.0013), a qual, inclusive, faz referência direta à doutrina de minha autoria, publicada no portal ConJur:

“Acrescento a didática lição doutrinária, da lavra do eminente Yuri do Amaral Bezerra, que, por sinal, é advogado…”

O artigo mencionado, intitulado “A cumulação das multas por recurso protelatório”, explora justamente os fundamentos que autorizam a coexistência das sanções processuais de natureza punitiva e reparatória — entendimento hoje sedimentado em decisões de mérito em diversas esferas judiciais. Senão, vejamos:

(…)

Ora, a oposição de embargos de declaração com intuito manifestamente protelatório também se traduz como forma de oposição injustificada ao andamento do processo, justificando simultaneamente a aplicação da multa por litigância de má-fé e a aplicação da multa prevista pelo legislador quanto à oposição sucessiva de aclaratórios que não visam colmatar eventuais vícios da decisão hostilizada.

Múltiplas sanções

Nesse contexto, no caso em análise, a repetição recursal não apenas não atrai a multa do agravo interno, como pode desencadear múltiplas sanções, gerando impactos significativos na fase de liquidações e execução da sentença.

De mesmo modo, o §4º do artigo 1.021 do Código de Processo Civil carrega uma intenção clara: desestimular recursos infundados e proteger a autoridade das decisões monocráticas. Sua redação textual é objetiva, mas a aplicação prática foi transformada por uma interpretação jurisprudencial mais restritiva, que exige não apenas a improcedência, mas também a demonstração de caráter protelatório.

Essa “evolução interpretativa”, embora motivada por princípios constitucionais como o devido processo e a ampla defesa, distorce a literalidade da norma e fragiliza seu caráter pedagógico e dissuasório.

O resultado é um cenário de insegurança, onde a aplicação da multa depende menos da norma e mais da postura do órgão julgado.

Por isso, é fundamental que o advogado:

  • compreenda as nuances dessa interpretação;
  • avalie o risco da sanção com base no perfil do tribunal e do relator;
  • e busque sempre recorrer com fundamento sólido e objetivo, sem transformar o Agravo Interno num exercício de retórica vazia.

Ao final, o equilíbrio entre o direito de recorrer e o dever de respeitar o tempo da Justiça depende de todos nós, e começa pela responsabilidade no uso dos instrumentos recursais.

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Referências

BEZERRA, Yuri do Amaral. A cumulação das multas por recurso protelatório. Consultor Jurídico – ConJur, publicado em 07 jun. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-07/yuri-bezerra-cumulacao-multa-recurso-protelatorio. Acesso em: 21 abr. 2025.

BRASIL. Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 21 abr. 2025.

STJ – AgInt no REsp 1.842.604/MG, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 08.02.2021, DJe 12.02.2021.

TJDFT – AI 0734221-59.2022.8.07.0000, Rel. Des. Ana Cantarino, 5ª Turma Cível, j. 21.11.2024, DJe 04.12.2024.

TJSP – AI 1017890-19.2023.8.26.0554, Rel. Des. J.L. Mônaco da Silva, 5ª Câmara de Direito Privado, j. 17.04.2025.TRT21 – Proc. 0000733-77.2024.5.21.0013, Sentença do Juiz Carlito Antônio da Cruz, 11.04.2025.





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